Trabalhador resgatado de trabalho escravo há 4 anos ganha casa em São José dos Campos (SP)
José* ficou 20 anos trabalhando sem receber salário e morando em casebre em condições degradantes com a mãe Clotilde*
São José dos Campos (SP) - Morar e trabalhar em condições degradantes pelo período de 20 anos, sem receber salários e sobrevivendo com a ajuda de vizinhos. Um homem de mais de 60 anos, que vamos chamar de José*, passou por essa situação com o firme propósito de conseguir uma casa própria para a mãe, uma senhora que chamaremos de Clotilde*.
O empregador de José, proprietário de uma pequena propriedade rural no bairro de Bengalar, em São José dos Campos, fez uma promessa para o trabalhador: se cuidasse do seu gado leiteiro todos os dias, de segunda a segunda, ele daria um teto para José e sua mãe residirem e, após um tempo da prestação de serviços, a casa seria dada para ele como pagamento. José, então, começou a sonhar com a possibilidade de dar um lar permanente para dona Clotilde.
Mas o sonho logo se tornou um pesadelo: não apenas o empregador deixou de cumprir com a promessa de transferir a propriedade do casebre ao trabalhador, como o reduziu à condição de escravo. José, como outrora acontecera com sua mãe, foi transformado em um meio para obtenção de um fim. Um mero objeto ou mercadoria. Vivendo por anos em condições absolutamente desumanas, José e Clotilde permaneceram sonhando, mesmo estando no meio de um pesadelo. Até que em junho de 2020, ano marcado pela terrível pandemia da covid-19, ambos receberam uma surpreendente visita.
Tratava-se de uma operação de resgate realizada em conjunto por três instituições de defesa do trabalho decente, o Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho e Emprego e Polícia Federal. Na oportunidade, os agentes da PF efetuaram a prisão em flagrante do empregador pelo crime de redução de trabalhador à condição análoga à escravidão, tipificado pelo artigo 149-A, II e parágrafo 1º, III, do Código Penal. Hoje ele responde pelo crime em liberdade, mas pode ser preso a partir de uma condenação definitiva.
O que foi encontrado - Os auditores fiscais do MTE, que organizaram a ação fiscal, foram provocados por denúncias nas redes sociais. José realizava o manejo de gado leiteiro sem folgas desde 2005, sequer em feriados, e sem a concessão de férias, cumprindo uma jornada que se iniciava às 5 horas da manhã e terminava às 18 horas, todos os dias. Ele trabalhava na fazenda desde 1999, e não possuía registro em carteira de trabalho.
Ele residia na pequena casa localizada dentro da propriedade com dona Clotilde, que tinha 87 anos na época da operação, e que no passado prestou serviços para o pai do empregador.
O casebre se encontrava em situação absolutamente degradante: não havia geladeira e o fornecimento de água era intermitente, uma vez que vinha através de uma mina. Devido à falta de forro e algumas telhas quebradas, chovia dentro da casa, resultando em muita umidade e infiltrações nas paredes, forçando os idosos a dormirem embaixo de lonas em tempo de chuva. Não havia armários, sendo que os pertences eram armazenados no chão. A fiação elétrica estava em condições precárias. Devido a uma chaminé entupida, a casa estava tomada de fuligem, de forma que ambos respiravam fumaça quando era utilizado o fogão a lenha, especialmente devido à pouca ventilação dos ambientes.
José não recebia contrapartida remuneratória e trabalhava apenas em troca de moradia. Os idosos se alimentavam com a ajuda de vizinhos e voluntários, que doavam cestas básicas.
Desfecho da operação - Os auditores fiscais do trabalho caracterizaram a redução de trabalhadores a condições análogas à escravidão, nas modalidades de condições degradantes de trabalho e jornada exaustiva. "Foram efetuados procedimentos de resgate do trabalhador, dentre eles, a emissão das guias de seguro-desemprego de trabalhador resgatado”, explica o auditor fiscal do trabalho, Marco Aurélio Peres. A PF efetuou a prisão em flagrante do proprietário da fazenda, que afirmou pagar salário por produção e conceder cestas básicas, contudo, não tinha recibos ou qualquer evidência que provasse o seu argumento.
“Durante o interrogatório, o proprietário da fazenda reconheceu a ininterrupção do trabalho exercido pelo empregado, o não cumprimento dos encargos trabalhistas, bem como a promessa de doação da casa onde moram, feita por ele, e que foi a razão principal para mantê-los naquela condição por tanto tempo", esclareceu, na época, a delegada da Delegacia de Polícia Federal em São José dos Campos, Patrícia Helena Shimada.
O MPT firmou termo de ajuste de conduta (TAC) com o empregador, pelo qual ele se comprometeu com o cumprimento de três obrigações, consideradas emergenciais: efetuar o registro do contrato de trabalho em carteira de trabalho no prazo de 5 dias; reformar a casa em que o trabalhador reside, providenciando, no prazo de 30 dias, todas as melhorias necessárias para garantir condições dignas de moradia, tornando-a adequada e salubre, garantindo também a posse mansa e pacífica da casa e seus arredores (parte da propriedade rural) ao trabalhador, de forma vitalícia, sem prejuízo de futura transferência de propriedade da casa e parte da propriedade rural para a vítima; e garantir o pagamento de uma ajuda mensal de R$ 300 e uma cesta básica mensal no valor mínimo de R$ 100, “até o efetivo pagamento da indenização a título de dano moral coletivo”, de forma que a quantia poderá futuramente ser compensada.
O MPT encaminhou ofício à Defensoria Pública da União, dando início ao apoio legal ao trabalhador, para que conseguisse adquirir o benefício social.
Do pesadelo ao sonho – Foram quatro anos de luta das instituições para efetivar a transferência do imóvel para José, dando cumprimento, assim, à obrigação do TAC. Além da burocracia imposta pelos diversos herdeiros da propriedade, o casebre possuía problemas de documentação, incluindo penhoras, processos e tributos não recolhidos.
“Finalmente, após 4 anos de idas e vindas conseguimos a transferência do imóvel para o trabalhador, com a casa devidamente reformada. O terreno onde a casa está localizada, bem como toda a área construída, agora pertence ao José*. Esperamos que ele e sua mãe, agora com 91 anos, usufruam do imóvel, cuja posse é mais do que merecida, após anos de sofrimento, exploração e trabalho não remunerado”, celebra a procuradora Celeste Maria Ramos Marques Medeiros.
Além do imóvel, José também conseguiu, com o apoio dos advogados da DPU, o benefício da aposentadoria, de forma que hoje ele tem a possibilidade de dar uma vida digna para si e para sua mãe, sem depender de terceiros para conseguir sua subsistência.
Depois de uma vida de submissão e sofrimento, José e Clotilde agora podem repousar no sofá da sua casa, sem a preocupação do que fazer hoje para garantir o amanhã. “Quando há a garantia da dignidade, o resto vem em acréscimo”, finaliza a procuradora Ana Farias Hirano, que participou diretamente do resgate em 2020.
*Os nomes citados nessa matéria são fictícios. A medida tem como finalidade proteger os dados pessoais das vítimas