Grupo Odebrecht sofre a maior condenação por trabalho escravo da história
Empresa deve pagar R$ 50 milhões por reduzir trabalhadores à condição análoga a de escravos, aliciamento e tráfico internacional de pessoas nas operações de Angola, no continente africano
Araraquara – O Ministério Público do Trabalho conseguiu a condenação do grupo Odebrecht, representado por Construtora Norberto Odebrecht S.A., Odebrecht Serviços de Exportação S.A. (antes denominada Olex Importação e Exportação S.A.) e Odebrecht Agroindustrial S.A. (antes denominada ETH Bioenergia), ao pagamento de indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 50 milhões por reduzir trabalhadores à condição análoga a de escravos, mediante aliciamento e tráfico internacional de pessoas, nas obras de construção de uma usina de cana-de-açúcar em Angola, no continente africano. A decisão representa a maior condenação por trabalho escravo da história da justiça brasileira.
A sentença proferida pelo juiz Carlos Alberto Frigieri, da 2ª Vara do Trabalho de Araraquara, determina que o grupo deixe de “realizar, promover, estimular ou contribuir à submissão de trabalhadores à condição análoga a de escravo”, sob pena de multa diária de R$ 200 mil; “deixe de realizar, promover, estimular ou contribuir ao aliciamento nacional e/ou internacional de trabalhadores”, sob pena de multa diária de R$ 200 mil; não utilize em seus empreendimentos no exterior mão de obra contratada no Brasil “enviada ao país estrangeiro sem o visto de trabalho já concedido pelo governo local”, sob pena de multa diária de R$ 120 mil; e que não realize intermediação de mão de obra com o envolvimento de aliciadores – os chamados “gatos” -, sob pena de multa de R$ 100 mil. Por fim, a decisão condena o grupo ao pagamento de R$ 50 milhões a título de danos morais coletivos (a serem revertidos a projetos e iniciativas indicados pelo MPT) e à publicidade da decisão em dois grandes veículos de comunicação após o trânsito em julgado.
O inquérito contra o grupo Odebrecht foi instaurado pelo procurador Rafael de Araújo Gomes a partir da publicação de uma série de reportagens veiculadas pela BBC Brasil (braço do maior conglomerado jornalístico britânico), mencionando a existência de inúmeras condenações proferidas pela Justiça do Trabalho, reconhecendo a submissão de trabalhadores brasileiros, contratados na cidade de Américo Brasiliense (a 298 km de São Paulo), a condições degradantes de trabalho após terem sido enviados para trabalhar em Angola.
As obras pertenciam, alegadamente, à Biocom/Companhia de Bioenergia de Angola Ltda., empresa angolana da qual são sócios a Odebrecht Angola, empresa do grupo multinacional brasileiro Odebrecht, a Sonangol Holdings Ltda., vinculada à estatal petrolífera de Angola, e a Damer Industria S.A. (empresa privada da qual são sócios dois generais e o vice-presidente de Angola). Atualmente, a Damer foi substituída pela Cochan S.A., pertencente a apenas um desses generais.
As provas produzidas nas dezenas de reclamações trabalhistas movidas contra a Odebrecht e a Pirâmide Assistência Técnica Ltda. (formalmente, uma prestadora de serviços da Biocom) revelam que os trabalhadores envolvidos em montagens industriais eram submetidos a condições indignas de trabalho em Angola, particularmente no que se refere a instalações sanitárias, áreas de vivência, alimentação e água para beber. Vários trabalhadores adoeceram em razão das condições a que foram submetidos.
Em depoimentos prestados à Justiça, os trabalhadores relataram que os ambientes na obra eram muito sujos e os banheiros, distantes do local de trabalho, permaneciam sempre cheios e entupidos, obrigando os operários a evacuar no mato. Na obra havia, em média, 400 trabalhadores registrados em Américo Brasiliense pela Pirâmide. Resultados de exames médicos de trabalhadores que retornaram de Angola, encaminhados pelo Departamento Municipal de Saúde da Prefeitura de Américo Brasiliense, mostram que vários operários apresentaram febre, dor de cabeça, dor abdominal, diarreia, náuseas, fezes com sangue, emagrecimento, e alguns apresentaram suspeita de febre tifoide. Os relatos revelam ainda que a água consumida era salobra e a comida, estragada.
Em outros depoimentos relata-se que nas refeições era servida uma carne vermelha que se imaginava ser bovina. No entanto, a partir de informações que obtiveram do próprio cozinheiro, os trabalhadores descobriram que era servida carne de jiboia. Dentro da cozinha do refeitório era comum a presença de baratas e ratos; depoentes alegaram ter visto um rato morto entre os pratos. Quando um dos operários se deparou com um macaco na cozinha, desistiu de comer no local, pois sabia que o animal seria morto e servido aos trabalhadores como refeição.
Aliciamento e tráfico de pessoas -Além da submissão a condições degradantes de trabalho, descobriu-se que os trabalhadores recrutados foram submetidos ao aliciamento, primeiramente em território nacional e a seguir no exterior, tratando-se de hipótese típica de tráfico de seres humanos. As contratações aconteceram entre 2010 e 2014. Relacionado a isso, está a prática do “marchandage”, isto é, uma mera intermediação de mão de obra (o trabalhador tratado como mercadoria), que caracteriza a contratação de uma pseudoempresa, a W. Líder. Tanto a Pirâmide quanto a W. Líder, contratadas do grupo, trouxeram trabalhadores das cidades de Cocos (BA), São José da Lage (AL), União dos Palmares (AL), Alto Piquiri (PR) e Alto Araguaia (MT), e os enviaram para Américo Brasiliense e São José da Barra, onde houve a contratação e o envio desses trabalhadores a Angola.
Os depoimentos reforçam a condição de precariedade a que foram submetidos esses trabalhadores, que aguardaram por várias semanas a contratação prometida. Sem serem efetivamente registrados, sem salários, e na espera da emissão de passaportes e outras formalidades necessárias para a viagem ao exterior, os operários acumularam dívidas na região de Américo Brasiliense para se sustentar.
O MPT juntou evidências que demonstram a Odebrecht como verdadeira responsável pelos fatos. Segundo o inquérito, de forma planejada, a empresa, com a colaboração de representantes da Pirâmide, da W. Líder e de uma terceira subcontratada chamada Planusi, predeterminou o ingresso de todos os trabalhadores enviados a Angola na condição de estrangeiros ilegais no país, sujeitos a sanções previstas na legislação angolana, inclusive prisão, por não estarem autorizados a trabalhar no país. Todos os trabalhadores, depois de contratados no Brasil, eram enviados ao exterior com apenas o visto ordinário aposto nos seus passaportes, o que é considerado crime em Angola. Como resultado, os trabalhadores que foram apanhados na cidade de Cacuso pela polícia angolana foram presos, sendo que a maioria preferiu, depois disso, não sair dos alojamentos na própria obra.
O inquérito aponta que as empresas enviaram ofícios à Embaixada de Angola pedindo vistos ordinários, válidos por apenas 30 dias, sendo que a permanência dos operários em solo angolano era sempre contratada por período indeterminado.
Cerceamento de liberdade -a prova reunida pelo MPT demonstra que os trabalhadores brasileiros foram também submetidos ao cerceamento de sua liberdade, inclusive mediante a apropriação de documentos com o propósito de serem mantidos confinados no canteiro de obras. Chegando a Angola, o procedimento adotado pela Biocom/Odebrecht era de imediatamente tomar de todos os trabalhadores os seus passaportes, documento de identificação indispensável à salvaguarda dos direitos do estrangeiro. Além disso, não era disponibilizado pelos empregadores qualquer transporte para sair, ainda que aos finais de semana e nas folgas, do canteiro de obras, distante vários quilômetros da cidade mais próxima, numa região que não era servida por transporte coletivo. A Odebrecht mantinha na entrada do canteiro guardas armados, que eram instruídos a não deixar os trabalhadores saírem. “Fui até impedido de deixar o alojamento em direção ao refeitório para buscar um remédio para dor de cabeça”, afirmou em depoimento um dos trabalhadores.
“O que dizer da humilhação a que foram submetidos os trabalhadores, não um, mas vários, que tiveram, como confessado, que sair do país por meio de “salvo conduto”, como se apátridas fossem, já que seus passaportes jamais foram devolvidos?”, questiona Gomes.
Odebrecht é dona do negócio, é responsável –na ação civil pública, o MPT credita toda a responsabilidade pelo aliciamento, tráfico internacional de seres humanos e submissão de trabalhadores a condições análogas à escravidão ao grupo Odebrecht, e ainda afirma que a Odebrecht é dona do negócio. Contudo, a estratégia de defesa utilizada pela Construtora Norberto Odebrecht, principal empresa do grupo Odebrecht, para eximir-se de qualquer responsabilidade com relação aos fatos, é de que a Biocom é uma empresa estrangeira independente; embora integre o grupo Odebrecht, a construtora jamais teve qualquer relação com ela ou com as obras de construção da usina. A tentativa é de alegar a incompetência da justiça brasileira utilizando este argumento.
Na decisão, o magistrado afirma: “contrariando essa alegação defensiva e revelando a verdade real, está o depoimento do sócio proprietário da CML - Caldeiraria, Mecânica e Locação Ltda., Sr. Enoque Pedro de Alcântara ao Ministério Público do Trabalho, afirmando que a Construtora Norberto Odebrecht foi responsável por todas as obras de construção civil na Usina (de Angola), reconhecendo, ainda, que recebeu a informação de um representante do alto escalão de comando, Sr. Bruno Marcos (nome identificado, também, pelo proprietário da Planusi, conforme fls. 4.325 do Inquérito Civil Público), sendo que a ETH, atualmente denominada Odebrecht Agroindustrial S.A. (OAI), terceira ré, era detentora de cerca de 70% da Biocom Angola e por isso pôde assumir a administração da usina, como de fato assumiu, tanto assim que substituiu todo o pessoal envolvido com a Biocom, inclusive os diretores e gerentes brasileiros contratados no início e que o saldo devedor do primeiro contrato firmado pela CML com a Biocom foi reduzido, sendo necessário firmar-se um novo contrato para receber parte dos valores decorrentes dos serviços prestados anteriormente, cujo pagamento seria feito, agora, pela empresa Olex, atual Odebrecht Serviços de Exportação S.A. (OSE), segunda ré, e não pela Biocom”.
Chamou a atenção do Ministério Público, também, que na audiência judicial de instrução uma das testemunhas de defesa, Rubian Zillmer, foi apresentada como sendo administradora da Biocom, mas consulta ao CAGED do Ministério do Trabalho e Emprego revelou que ela ainda é empregada da Odebrecht Agroindustrial.
Financiamento oculto do BNDES –Um dos pedidos do MPT que não foram apreciados pelo juízo, que concluiu pela incompetência da Justiça do Trabalho para isso, foi a condenação das empresas do grupo Odebrecht ao não recebimento de incentivos e empréstimos concedidos por qualquer órgão público ou instituição financeira pública, inclusive o BNDES. Segundo contratos e recibos de pagamento relacionados à obra, esta teria sido financiada com dinheiro do BNDES, mas não há qualquer registro público da concessão do financiamento: publicamente, ele não existe.
“O sigilo com relação a financiamentos para Angola pode ocultar, na verdade, o segredo de que a real beneficiária do financiamento pelo BNDES não é a Biocom ou o governo angolano, mas a Odebrecht. Mas essa não seria toda a história, pois não é crível que os parceiros angolanos concordassem com isso sem uma compensação à altura. E se estamos a falar em “parceiros angolanos”, estamos falando, muito claramente, do círculo íntimo do presidente da república, José Eduardo dos Santos, há 34 anos seguidos no poder”, diz Rafael.
Dessa forma, o dinheiro utilizado para remunerar as contratadas da Biocom pode ter vindo, diretamente, da brasileira Construtora Norberto Odebrecht ou da Odebrecht Agroindustrial. Neste caso, não haveria a condição, exigida pela legislação tributária (leis 10.637 e 10.833), para a não incidência de PIS e COFINS, dado que não se verificaria o “ingresso de divisas” vindas do exterior. A lei 11.371/2006 permite que o exportador mantenha aplicadas no exterior as divisas recebidas, sem o pagamento desses impostos, mas os exportadores são as contratadas da Biocom, empresas brasileiras como a Pirâmide, que receberam no Brasil o seu pagamento, com depósito em conta pela Olex.
O autor e os réus podem recorrer da sentença ao Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região.
Processo nº 0010230-31.2014.5.15.00749