Evento discute soluções para a formação profissional digna de jovens atletas no Brasil

Seminário “Juntos pelos direitos de quem sonha ser atleta” reuniu os maiores especialistas do país em torno de um objetivo: contribuir para a melhoria do esporte no Brasil

 

 Campinas - No primeiro dia do seminário “Juntos pelos direitos de quem sonha ser atleta”, realizado pelo Ministério Público do Trabalho em Campinas, o público que compareceu ao Hotel Vitória teve a oportunidade de presenciar o depoimento de autoridades quando o assunto é formação de atletas. Esportistas, educadores físicos, procuradores, juízes, atores do cenário social e até parlamentares se reuniram para discutir um dos grandes problemas que aflige a sociedade: a falta de preparo dos clubes para receber crianças e adolescentes que sonham em um dia se tornarem atletas profissionais. O objetivo do evento é discutir alternativas viáveis para a melhoria da Lei Pelé e a profissionalização segura dos jovens no Brasil, prevenindo casos de abuso e de trabalho infantil.

Rafael Dias Marques discursa na abertura do evento
Rafael Dias Marques discursa na abertura do evento

Foram expostos três painéis baseados no tema “O Legado dos Megaeventos e os Direitos Fundamentais: a proteção de crianças e adolescentes em formação profissional desportiva”, chamando atenção ao fato do Brasil ter sediado a mais recente Copa do Mundo e também ser sede das Olimpíadas em 2016. No painel “Histórias de vida”, a jornalista Adriana Saldanha mediou um bate papo com grandes nomes do esporte brasileiro, que contaram suas experiências e dificuldades que passaram até chegarem à categoria profissional.

O lendário lateral Zé Maria, que jogou no Corinthians por 13 anos nas décadas de 70 e 80, iniciou a exposição com observações acerca da sua carreira, com ênfase na dificultosa formação como atleta. Ele lembrou que todo aspirante a esportista deve se preocupar com a educação, especialmente devido às limitações impostas pelos clubes nas chamadas “peneiras”, que contemplam um número bastante limitado de jovens. “A educação, fundamental na vida de um atleta, muitas vezes é esquecida. O resultado é jovens perdidos, que buscam caminhos alternativos para o sustento, um deles a criminalidade”, explica.

Zé Maria fala sobre história no futebol ao lado de Tinga e Aline
Zé Maria fala sobre história no futebol ao lado de Tinga e Aline

O ex-meia da Ponte Preta Oscar Sales de Bueno, o Dicá, conhecido nos anos 70 pelo exímio talento na cobrança de faltas, citou a excessiva cobrança dos pais exercida sobre meninos para que participem das “peneiras”, o que acaba contribuindo para a precarização na formação dos jovens atletas. ‘’Durante os testes, muitos garotos não estão preparados física e psicologicamente. A sobrecarga emocional decorrente de um corte pode destruir um futuro, e esse é o fato que mais me preocupa na formação de novos valores’’, lamenta o ex-craque. Ele também afirmou que “jamais” gostaria de ver os netos passando pelas mesmas dificuldades que teve de encarar no período de formação.

O atual volante do Cruzeiro, Paulo César Fonseca do Nascimento, o Tinga, também contribuiu para o painel ao contar dos entraves que teve de superar para chegar à categoria profissional. Tinga desmistificou a imagem de que o futebol é um esporte justo, que dá oportunidades e proporciona grandes remunerações a todos. Ele lembrou que, em média, a cada 100 meninos, dois são escolhidos para jogar nas categorias de base e geralmente apenas um deles se profissionaliza, sem a garantia de que será bem sucedido. O jogador fez críticas à Lei Pelé, que trouxe benefícios principalmente aos empresários do futebol e tirou dos clubes o direito de ganhos sobre a venda de jogadores. Segundo ele, isso desmotivou os clubes a investirem mais nos jovens atletas. ’Hoje o jogador é fatiado entre clubes e investidores. Nesse contexto, fica difícil para uma agremiação construir uma identidade, investir pesado na carreira e na vida de um atleta. O reflexo disso se vê em profissionais sem estudo, que não conseguem administrar a carreira e que sofrerão no futuro com a falta desse planejamento’’, disse.

O ex-jogador Dicá mostra preocupação com a cobrança excessiva sobre aspirantes a atletas
O ex-jogador Dicá mostra preocupação com a cobrança excessiva sobre aspirantes a atletas

 

A ex-capitã da seleção brasileira de futebol feminino, Aline Pellegrini, deu ênfase à diferenciação por gênero que existe dentro do futebol, com investimentos ainda menores na formação de meninas no esporte. Segundo ela, isso gera uma dificuldade na manutenção da carreira, devido ao desprestígio que isso gera. “Hoje, depois de ter parado, é como se eu não tivesse feito nada”, lamenta. Ela lembra que o negócio em torno do futebol traz prejuízos para os sonhos dos jovens atletas, e essa mentalidade deve ser mudada. ‘”Devemos lutar contra o futebol produto, o futebol dinheiro, e levar essa corrente à frente, trazer à tona o lado humanitário do esporte, pois não estamos lidando com mercadoria, mas sim com sonhos”, encerra.

Direitos fundamentais - o segundo painel abordou a formação profissional desportiva e os direitos fundamentais da infância e da juventude. Fizeram parte da exposição a diretora do Escritório da Organização Internacional do Trabalho no Brasil, Laís Abramo, a representante da Unicef Brasil, Fabiana Gorenstein, o procurador do Ministério Público do Trabalho em Minas Gerais, Genderson Lisboa, e o juiz José Roberto Dantas Oliva.

O procurador do MPT citou casos de desrespeito à Lei Pelé, que estipula a proibição de menores de 14 anos em testes e seleções e também veta a relação contratual entre clubes e menores nesta faixa etária. Ele lembrou a importância da intervenção dos órgãos de proteção da criança e do adolescente ao serem identificados os casos. “Não há nada errado com o fato do clube lucrar com a transferência de novos valores, isso é decorrente do capitalismo. O que não pode acontecer é a exploração do trabalho infantil nesse processo. A justiça deve atuar o quanto antes, fiscalizando e punindo as agremiações que desrespeitam a lei’’, alertou. O juiz José Roberto Dantas Oliva reiterou a posição do procurador, ressaltando a importância da preservação de direitos trabalhistas e previdenciários desde a juventude do atleta. ’Tirar a criança da convivência familiar e escolar é algo terrível’’.

O procurador Genderson Lisboa defende a intervenção da justiça em casos de trabalho infantil
O procurador Genderson Lisboa defende a intervenção da justiça em casos de trabalho infantil

Formação no Brasil – o terceiro painel também reuniu grandes nomes, e discutiu o modelo brasileiro para formação e preparação de jovens atletas, abordando atualidades e perspectivas. A mesa foi presidida pelo coordenador nacional da Coordinfância (Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes), Rafael Dias Marques.

O diretor do Departamento do Esporte de Base e Alto Rendimento do Ministério do Esporte, André Arantes, apresentou ao público os programas nacionais para a formação desportiva de crianças e adolescentes no Brasil, dentre eles, o Atleta na Escola e o Mais Educação. Arantes afirmou que o governo está intensificando as ações de olho nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016. Em contrapartida, o educador físico João Paulo Medina, que já foi preparador físico em grandes clubes como Corinthians, Santos e Internacional, lamentou a indiferença mostrada pelas entidades do esporte na melhoria da formação de base no Brasil e do esporte como um todo. "Me preocupa o desinteresse de dirigentes e CBF justamente no momento em que o futebol brasileiro pede mudanças drásticas", observa.

João Paulo Medina critica entidades como a CBF que não se preocupam com a formação do atleta
João Paulo Medina critica entidades como a CBF que não se preocupam com a formação do atleta

O aliciamento de aspirantes a atletas da bola e o tráfico de pessoas foi lembrado pela deputada federal Flávia Morais (PDT-GO), que foi relatora da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Tráfico de Pessoas no Brasil. A parlamentar apresentou propostas de mudanças na lei que exigem o credenciamento de jogadores recrutados por clubes e olheiros junto ao Poder Público, especialmente se há oferta para jogar em outros países. A deputada defendeu a Lei Pelé como sendo um importante instrumento para a garantia dos direitos fundamentais da criança e do adolescente. "Em muitos casos, o aliciamento de jovens atletas é realizado de forma irregular, ganhando caráter de tráfico de pessoas. Preocupada com esse cenário, nossa legislação (Lei Pelé) busca enxergar o futebol não apenas como profissão de alto rendimento, mas também como instrumento de desenvolvimento humano, social e cultural", afirma. Por fim, o coordenador da área de Esportes para o Desenvolvimento do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Brasil, Rodrigo Fonseca, compartilhou com o público suas experiências internacionais e os exemplos que podem ser seguidos pelo Brasil na formação de jovens atletas.

O coordenador da Unicef Rodrigo Fonseca relata suas experiências internacionais
O coordenador da Unicef Rodrigo Fonseca relata suas experiências internacionais

Nesta terça-feira (2), o evento apresenta dois painéis que tratarão do intercâmbio cultural, tráfico desportivo e trabalho degradante, e se aprofundam nas experiências internacionais de formação profissional desportiva. Na parte da tarde, duas oficinas dinamizam os trabalhos, com abertura de Juca Kfouri.

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